Sarah Higino: A força transformadora da música
Dentro da sala de aula, professora Sarah. Na sala de concerto, maestrina Sarah. Fora desses dois ambientes, Sarinha. É assim que se divide Sarah Higino (que não revela a idade), matriarca do projeto Volta Redonda Cidade da Música: entre a rígida disciplina quando está dentro das salas de música e o carinhoso espírito maternal quando está do lado de fora.
Sarah se tornou um exemplo às crianças de Volta Redonda, no interior do estado do Rio de Janeiro. Mulher, negra, maestrina, pianista e professora bem sucedida que veio de uma família de 10 irmãos e pais batalhadores, que deixaram Minas Gerais em busca de emprego na Companhia Siderúrgica Nacional, em 1941.
A volta-redondense tem seu trabalho reconhecido por importantes nomes da música clássica brasileira e poderia trabalhar em diferentes lugares do mundo, mas escolheu a cidade em que nasceu para atuar. Ela dá aula de música e coro no projeto Volta Redonda Cidade da Música, que atualmente atende cerca de 4000 crianças da rede municipal de ensino. O projeto aplica aulas de música nas escola e se propõe a ampliar os horizontes das novas gerações que não veem seu futuro necessariamente atrelado à CSN.
Além das aulas e de assumir a coordenadoria pedagógica e a regência de diversas orquestras do projeto, Sarah é responsável pelo intermédio entre o Volta Redonda Cidade da Música e a prefeitura (que sustenta o projeto social). Conciliando uma agenda frenética, ela atua de forma apartidária entre os setores administrativos da Educação Municipal em busca de ajuda do poder público para conseguir trabalhar com seriedade em prol das crianças de sua cidade.
São jovens de 4 a 17 anos de 39 das 90 escolas da periferia da cidade do aço que não teriam outro caminho senão o da siderúrgica. Jovens que puderam aflorar suas sensibilidades e se desenvolver como artistas profissionalmente graças ao esforço de pessoas como Sarah, que dedica a vida à arte para resistir ao aço em Volta Redonda.
Volta Redonda, RJ, Dezembro 2017
História publicada na versão online da Revista TPM

Dez. 7, 2017. Sarah posa em sua casa em Volta Redonda, cidade com 265 mil habitantes (IBGE 2017) que faz parte do Vale do Paraíba, no sul do Estado do Rio de Janeiro. O nome Volta Redonda se dá justamente por causa do rio Paraíba do Sul: a cidade se localiza em um trecho do rio onde há uma curva acentuada. Fora dessa curva, tem um pontinho que fica pra cima e pra baixo na cidade desenvolvendo um projeto que beneficia 4000 alunos da rede pública do Ensino Municipal. A agenda da Sarah não tem descanso, mas como boa virginiana, ela consegue se organizar com maestria entre a sede do projeto, as escolas em que dá aula e as sedes administrativas onde faz a comunicação entre o Volta Redonda Cidade da Música e o poder público.
Dez. 7, 2017. Na casa onde mora sozinha, Sarah estuda piano cotidianamente para praticar seu o instrumento favorito. Dos compositores, ela prefere Beethoven. Já o tipo musical que mais gosta é a música francesa. Sarah tem uma relação próxima com a França há muitos anos. É casada com um francês há 11 anos (cada um em sua casa, em bairros diferentes) e foi em Paris que se aprofundou artisticamente. Em 1999, a maestrina foi convidada por uma fundação internacional para uma viagem de estudos com outros artistas. Esse intercâmbio resultou, três anos depois, em um recital de piano na embaixada brasileira em Paris, onde Sarah interpretou um programa franco-brasileiro.

Dez. 7, 2017. A música chegou cedo na vida da Sarah. Ela é a filha mais nova de 10 irmãos, sete mulheres e três homens. Seu pai, falecido em 1993, entendia a importância da música e fez questão que todos em casa aprendessem algum instrumento. Aos 8 anos, uma irmã mais velha de Sarah lhe ensinou piano. E foi aí que a menina conheceu Nicolau Martins de Oliveira.

Dez. 5, 2017. Sarah na saída da nova sede (prédio de 2015) do projeto Volta Redonda Cidade da Música, fundado em 1974 pelo Maestro Nicolau Martins de Oliveira. Hoje, aos 75 anos, o catarinense que foi parar em Volta Redonda aos 16 anos para trabalhar na CSN, conta a história de como conheceu Sarah. "Eu era professor no projeto e precisava de alguém para tocar piano nas minhas aulas. Já conhecia o pai da Sarah da CSN e sabia que os filhos estudavam música". E Sarah complementa: "Ele chamou uma das minhas irmãs, que não topou mas me indicou, aos 8 anos". Depois de fazer cursos técnicos em piano e flauta transversal, de se formar como regente (UFRJ) e pianista (UFRJ) e fazer mestrado em Música - Piano (UFRJ) , a volta-redondense assumiu a regência de quatro dos seis grupos musicais do projeto, além de ser coordenadora pedagógica dos coros e das bandas-mini.

Dez. 5, 2017. Sarah conversa com o maestro Nicolau Martins de Oliveira nos corredores da sede do projeto, no bairro Vila Mury, em Volta Redonda. O espaço é administrado unicamente por Nicolau, Sarah e José Sergio Tôrres da Rocha. Além da trinca de professores-maestros, a sede tem uma equipe enxuta de sete funcionários entre limpeza, portaria, segurança e secretaria. Já nas escolas do município, onde o projeto atua em 39 das 90 existentes, através da Secretaria Municipal de Educação e da FEVRE (Fundação Educacional de Volta Redonda), os sete professores licenciados em música se formaram no próprio projeto — antes de cursarem a faculdade e voltarem aptos a assumir o cargo público. Os professores contam com o auxílio de uma equipe de monitores e repetidores formada por alunos destaques do projeto.

Dez. 5, 2017. Sarah rege a orquestra de concerto durante um ensaio na sede. O único foco do projeto é proporcionar um futuro melhor às crianças atendidas, por isso o Volta Redonda Cidade da Música consegue ser apartidário mesmo sendo subordinado à prefeitura. Sua força cultural e social construíram uma tradição na cidade por muitos anos que sustenta o projeto até mesmo à prefeituras que não simpatizam com a ideia de ter que bancar uma ação social que não é cabide de emprego e nem pode ser usado como exemplo de resultado da iniciativa pública, pois tal apoio se mostra debilitado na maioria das gestões.

Dez. 5, 2017. Dos 74 alunos que estavam presentes no ensaio (foto), 35 eram negros. O projeto atende crianças, adolescentes e jovens dos Ensinos Básico, Fundamental e Médio da rede pública e o plano é estender a atuação de 39 para 50 escolas municipais de Volta Redonda. O objetivo é educar através do processo de musicalização na escola. No início do projeto, eram os professores de música que procuravam as escolas para desenvolver a parceria, atualmente são os diretores das escolas que procuram o projeto em busca da música em suas salas de aula.

Dez. 5, 2017. Os instrumentos que pertencem ao projeto foram doados em diferentes gestões da prefeitura, além dos que chegaram através de doações da sociedade. Os principais pontos que Sarah desenvolve durante os ensaios da orquestra (foto) e nas aulas de música são a disciplina, a responsabilidade e o bom desempenho musical. Rígida e perfeccionista à frente das orquestras e coros, ela também educa os jovens, além de ensiná-los a técnica musical. O aluno Gabriel Martins, 10 anos de idade e há 3 no projeto, diz que "sem a professora Sarah seria tudo desorganizado".

Dez. 5, 2017. Durante o ensaio da Banda de Concerto (cordas, metais e sopros) na sede do projeto, é possível observar a vaidade da maestrina. Está sempre arrumada, com unhas pintadas, batom, cabelos cuidados, sapatos com salto e acessórios que condizem com seu estilo feminino. "Se na África os negros eram reis e rainhas, eu sou uma rainha!", brinca Sarah, nome que vem do hebraico e significa princesa.

Dez. 5, 2017. Ao fim do ensaio de três horas, os alunos guardam os instrumentos do projeto em cases que ficam organizados no chão do lado de fora da Sala de Ensaio. Felipe Silva, 17 anos (à direita na foto), é considerado um aluno promissor: em janeiro de 2017, tirou 10 na UNIRIO, além de outras 9.7 e 9 no curso de licenciatura em música. Em seus planos estão um intercâmbio, bacharel e doutorado em música.

Dez. 5, 2017. Sarah entre os jovens durante o lanche na sede. No refeitório, um cartaz amarelo traz a frase do professor Nicolau: "No dia em que Volta Redonda for conhecida como a 'Cidade da Música', aí, então, estaremos fabricando o melhor aço do mundo".

Dez. 5, 2017. Sarah observa os alunos durante o intervalo do ensaio que os prepara para seis concertos natalinos que fazem parte do programa especial Natal nas Igrejas. Geralmente, os jovens do projeto se apresentam em festividades comemorativas da comunidade e da região, como Natal, Páscoa e o aniversário da cidade.

Dez. 6, 2017. Final do dia em Volta Redonda com a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) ao fundo. A cidade de 63 anos se desenvolveu a partir da instalação da empresa, que tem 76 anos. Em 1941, houve uma forte migração para a região que pertencia à Barra Mansa e onde estava começando a ser construída a CSN. Em 1946, quando a Companhia deu início às atividades, a população local teve um boom de crescimento que foi equivalente ao desenvolvimento industrial. E, assim, em 1954, Volta Redonda se emancipou do município de Barra Mansa para fazer seu nome na história do aço nacional.

Dez. 6, 2017. Os dias de Sarah começam sempre cedo. Ela divide as funções extras entre as manhãs nas escolas e as tardes na sede. Na quarta-feira, dia 6, ela começou as atividades às 8h com uma entrevista a uma rádio católica local (foto).

Dez. 6, 2017. Sarah foi divulgar o concerto que aconteceria no dia e a agenda das apresentações natalinas de dezembro.

Dez. 6, 2017. A rotina da Sarah é tão intensa que ela responde sem pensar quando questionada sobre filhos: “Não deu tempo”. O tempo que tem, ela divide entre os filhotes do projeto, os concertos que rege com os jovens, os concertos pessoais em que se apresenta como pianista, os estudos de piano em casa, as funções administrativas entre o projeto e a prefeitura e ainda reserva um tempo do dia para ela; como a hora da aula particular de inglês (foto), uma vez por semana.

Dez. 6, 2017. Na mesma manhã, Sarah conversa com funcionária da tesouraria na sede da FEVRE (Fundação Educacional de Volta Redonda), que é responsável pela Ensino Fundamental e Médio da cidade. As funções como acompanhar os trâmites políticos relacionados às verbas e checar liberação de veículos para transporte dos alunos e dos instrumentos em dias de concerto ficam por conta da Sarah, que tem boa abertura nos segmentos administrativos municipais por conta dos mais de 20 anos em que atua no projeto.

Dez. 6, 2017. A maestrina conduz a comunicação entre projeto e poder publico. Na foto, ela se reúne com o presidente da FEVRE, Eduardo Dessupoio, para falar sobre verba para pagamentos atrasados.
Dez. 7, 2017. A aula particular semanal de dança é o momento em que Sarah se solta. Ela diz que a atividade traz mais desenvoltura para seus movimentos quando está regendo. E como na dança é o homem que conduz, a maestrina comenta que é um dos poucos momentos em que sai da posição de controle e se permite ser conduzida.

Dez. 7, 2017. Depois das primeiras funções matutinas, Sarah vai às escolas onde dá aula e ensaia. Na foto, a professora é presenteada por uma aluna ao chegar em uma escola da periferia da cidade para ensaiar o Coro Infanto-Juvenil.

Dez. 7, 2017. Sarah com alunos de aproximadamente 10 anos durante ensaio para os concertos natalinos.

Dez. 6, 2017. Sarah ensaia em outra escola da rede municipal. Ela enfatiza que "não é escola de música, é música na escola". Por isso, o projeto é desenvolvido através da Secretaria de Educação e não de Cultura.

Dez. 6, 2017. Alunos olham atentamente para a maestrina em ensaio com a flauta pífaro. Por conta da sua posição enquanto mulher, negra, de criação simples que hoje ocupa um cargo estritamente masculino, Sarah se tornou um espelho para as crianças da periferia, que agora têm para onde olhar além da siderúrgica.

Dez. 7, 2017. Na sala de casa, a maestrina mantém uma foto com os pais no porta-retrato. Nascido em Lavras, Minas Gerais, Miguel Higino, chegou à Volta Redonda em 1941 para trabalhar na obra da siderúrgica. O pedreiro estava com dívidas em Minas e entrou em um ônibus que levava os interessados a trabalhar na construção de uma usina, numa pequena cidade do interior do Rio. Quando viu que a vida seria promissora, levou a mulher, Theodora Costa, e o primeiro filho do casal para a cidade de onde nunca mais saíram e tiveram outros nove filhos. O pai de Sarah faleceu em 1993, em decorrência de problemas pulmonares gerados durante os anos de trabalho na companhia do aço.

Dez. 7, 2017. Em casa, a pianista ensaia em seu piano tcheco. Como Volta Redonda, Sarah viu sua vida de desenvolver ao redor da CSN. Foi lá que seu pai trabalhou e prosperou, foi lá que alguns dos seus irmãos trabalharam e seria lá que ela trabalharia em algum momento da vida se não tivesse se encontrado na música. Ela viu no projeto Volta Redonda Cidade da Música a chance de ampliar o horizonte dos jovens volta-redondenses que, assim como Sarah, não viam seus futuros atrelados à CSN -- resistindo ao caminho habitual.

Dez. 6, 2017. O pai de Sarah brincava que não precisava conhecer as sete maravilhas do mundo, pois, para ele, elas eram as suas sete filhas. Talvez isso faça sentido com a áurea de realeza que Sarah carrega. Parte disso se deve aos cuidados com sua beleza. Em dia de concerto, ela retoca os cachos no salão (foto).

Dez. 6, 2017. Algumas horas antes do concerto, na igreja, meninas aguardam para ensaiar.

Dez. 6, 2017. As crianças são posicionadas por Sarah na igreja São Sebastião, no bairro do Retiro. A igreja faz parte do roteiro de seis concertos que estão programados para dezembro.

Dez. 6, 2017. Cada concerto é um momento especial para os jovens. Percebe-se o nervosismo, mas a preparação (assim como a agenda) é tão intensa, que a maioria diz lidar bem com a tensão antes da apresentação.

Dez. 6, 2017. Duas horas antes do concerto, Sarah ensaia com as crianças do Coro Infanto-Juvenil e da orquestra (foto). A maestrina faz uma média onde 50% dos alunos que participam do projeto se tornam músicos profissionais.

Dez. 6, 2017. O Coro Infanto-Juvenil momentos antes da apresentação. Para esse concerto, foram convocadas cerca de 190 crianças de diferentes escolas públicas da cidade.

Dez. 6, 2017. Já com a roupa para fazer a regência do concerto, Sarah observa as crianças se direcionando ao palco, minutos antes da apresentação.

Dez. 6, 2017. Sarah durante o concerto que reuniu aproximadamente 600 pessoas na igreja. A maestrina diz que a maior necessidade do projeto atualmente é patrocínio que proporcione mais investimentos para levar as crianças para participarem de apresentações em outras cidades e estados.

Dez. 6, 2017. “Que a regência da vida deles seja a música”, deseja Sarah aos alunos que participam do projeto. Ela rege com mãos de ferro gerações que só tinham o aço em seu amanhã. Para esse arranjo sair harmônico, precisa-se de muita força feminina, seriedade como educadora, rigidez ao encarar a disciplina e delicadeza para traduzir tudo isso em sensibilidade musical. O incrível trabalho de mostrar às crianças uma nova possibilidade de futuro e de ser o exemplo para se inspirarem, vai além do espírito maternal que a maestrina traz em si. Parece coisa de rainha.